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21/08/2020

50 anos depois, ainda temos um sonho


Rosa Pavanelli*

Eles se encontram toda segunda-feira. Centenas de trabalhadores de baixa renda, líderes religiosos, membros de organizações de direitos civis, sindicalistas e ativistas de todos os Estados Unidos tomaram as ruas toda segunda-feira desde o dia 13 de maio para protestar contra a desigualdade, o racismo, a devastação ecológica, o militarismo e todas as formas de discriminação.

Eles decidiram se chamar “The Poor People’s Campaign”, ou seja, a “Campanha dos Pobres”, uma referência direta ao movimento iniciado por Martin Luther King Jr. alguns meses antes de ser assassinado em 4 de abril de 1968.

A origem da campanha foi uma marcha com carroças puxadas por mulas que começou em Marks, no Mississippi – naquela época a cidade mais pobre do estado mais pobre dos Estados Unidos –, e terminou em Washington. A “Campanha dos Pobres” de hoje também vai acabar em uma ação nacional na capital dos Estados Unidos, que acontecerá em 23 de Junho, Dia do Serviço Público das Nações Unidas.

Não é uma coincidência. Somente o acesso real de todos a serviços públicos de qualidade – educação, assistência médica, serviços de assistência à infância, aposentadoria decente, serviços de transporte público, sistema de justiça eficiente e boas infraestruturas – possibilitará a luta pela justiça social e pela redução das desigualdades.

Martin Luther King sabia disso. No dia em que foi assassinado em Memphis ele estava apoiando a greve de 1.300 trabalhadores do serviço de saneamento. Estava convencido de que juntar as forças de membros de sindicatos, organizações religiosas e militantes da justiça social era a melhor maneira de tirar milhões de americanos da pobreza.

Cinquenta anos depois, essa reivindicação é mais relevante do que nunca tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo. O setor privado conquistou uma parte cada vez mais importante da riqueza nacional, enquanto os Estados focaram mais pobres. Os sistemas de proteção social e de aposentadoria estão se tornando mais fracos, os impostos sobre os lucros das empresas e a renda dos mais ricos foram reduzidos, e empresas foram privatizadas em todos os setores: o capital público está encolhendo, e agora está perto de zero em todo o planeta. É até negativo nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Tudo isso se deve aos programas de austeridade e aos sistemas tributários regressivos, bem como a um quadro político que considera as empresas públicas obsoletas e os funcionários públicos como uma classe de trabalhadores privilegiados, caros e ineficientes. Sem mencionar os sindicalistas, que são vistos como perigosos dinossauros que deveriam ser, na melhor das hipóteses, ridicularizados e até, em muitos países, presos.

As consequências são devastadoras. A desigualdade de renda aumentou em todas as regiões do mundo. Desde 1980, o 1% mais rico em escala global recebeu o dobro da renda dos 50% mais pobres, apesar do fato de que esse grupo experimentou um aumento significativo na renda graças às altas taxas de crescimento na Ásia, como revelado no Relatório Global de Desigualdade de 2018.

O fenômeno é especialmente notável nos Estados Unidos, onde a parcela da renda nacional de apenas 10% dos indivíduos com renda mais alta é agora de 47%. No Brasil, essa proporção atinge 55%.

A batalha é dura, pois os trabalhadores do setor público estão sendo constantemente atacados. O número de países onde ocorreram detenções arbitrárias e prisões de trabalhadores passou de 44 em 2017 para 59 em 2018, de acordo com o Índice Global de Direitos da Confederação Sindical Internacional. Cerca de 2,5 bilhões de pessoas (que trabalham na economia informal, migrantes e pessoas com empregos precários) estão excluídas de qualquer proteção de leis trabalhistas.

Mas isso não é uma fatalidade. Na Internacional de Serviços Públicos (ISP), uma federação sindical global dedicada a promover serviços públicos de qualidade, a discussão de gênero e gerar "bem-viver" a todas e todos, estamos convencidos de que agora, mais do que nunca, os trabalhadores precisam de sindicatos fortes para lutar e conseguir empregos decentes e salários justos.

Como Martin Luther King há 50 anos, nós temos um sonho: que um dia trabalhadores de todas as raças e origens tenham uma vida decente – aliás, “Um dia” (“One Day”) é o título de uma série de curta-metragens produzidos pela ISP que apresenta a vida extraordinária de funcionários do setor público em todo o mundo.

Por ocasião deste Dia do Serviço Público, queremos prestar homenagem a esses trabalhadores novamente. Mas a questão não é um dia ou um momento. Trata-se de construir um movimento que perdure. Será uma jornada longa e difícil, mas quando movimentos sociais e sindicatos se juntam, tendemos a vencer.

É hora de mudar a narrativa. A luta pelos direitos universais, como um salário digno, boas condições de trabalho e acesso a serviços públicos de qualidade, nunca ficará ultrapassada.

* Rosa Pavanelli é secretária-geral da Internacional de Serviços Públicos (ISP) e presidenta do Conselho de Global Unions.